Como equilibrar um documento que atraia votos e, ao mesmo tempo, possa ser cumprido na hora de governar.
À primeira vista, o plano de governo parece uma estrada reta: escrever um conjunto de propostas, protocolar no Tribunal Superior Eleitoral e imaginar que, se eleito, tudo acontecerá de forma linear.
Mas basta olhar a realidade para perceber o contrário: o caminho da gestão é cheio de buracos, disputas políticas, crises inesperadas e obstáculos imprevistos.
Pois é, eis aí as duas faces do plano de governo:
- De um lado, tem que ser um documento capaz de embalar a campanha, atrair a confiança do eleitor e transformar promessas em votos.
- De outro, precisa ser um roteiro viável, com pé no chão, possível de se realizar, para assegurar credibilidade e futuro político.
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O plano de governo como peça de campanha
O plano de governo não é um exercício literário ou um mero requisito burocrático do processo eleitoral. Ele é, na prática, uma peça estratégica da campanha:
- Dá base ao discurso do candidato
- Inspira materiais, jingles, debates e entrevistas
- Funciona como contrato público com a sociedade, em que cada compromisso será alvo de cobranças.
A questão é que promessas mirabolantes podem até render manchetes e, no calor da eleição, seduzir o eleitorado. Porém, ao longo do tempo, elas podem virar uma armadilha. Se não se realizarem, corroem a imagem do governante, comprometem sua chance de reeleição e fecham portas para outros voos na política.
Por isso, o desafio é pensar o plano desde o início como um documento que combina sonho e realismo. Deve mostrar visão de futuro, mas sem cair no erro de oferecer o impossível.
O plano de governo como roteiro de gestão
Entre as duas faces do plano de governo, a segunda é aquela que se revela depois da eleição. O mesmo documento que serviu para conquistar votos passa a servir como bússola para governar.
Só que, na gestão pública, a execução nunca é um passeio no parque. Existem limitações orçamentárias, crises econômicas, pressões políticas, judicialização e podem acontecer até catástrofes, como a pandemia de Covid demonstrou. Nesses momentos, o plano de governo precisa resistir como um norte estratégico.
Isso significa duas coisas:
- Cumprir compromissos centrais. Não se trata de executar necessariamente cada linha ao pé da letra, mas de manter coerência com as bases assumidas diante do eleitor
- Ter flexibilidade responsável. É natural recalcular rotas diante de emergências, mas sem romper com os compromissos que estão no contrato com a sociedade.
Um governante preparado não é o que promete mundos e fundos, e sim aquele que cumpre o essencial e tem jogo de cintura para lidar com novos desafios.
Lições do planejamento estratégico
No campo do planejamento estratégico, originalmente pensado para empresas e corporações, existem duas formas de olhar para a estratégia que ajudam a entender o papel do plano de governo. Embora esses conceitos tenham origem no âmbito das empresas, eles são muito úteis para refletir sobre política e gestão pública.
A primeira forma olha para o fluxo: existe a estratégia pretendida (o que está no papel), a deliberada (o que se cumpre de fato) e a emergente (o que surge no caminho e passa a ser incorporado).
A segunda olha para o estilo adotado: alguns planos são clássicos (fechados e previsíveis), outros evolucionários (que reagem rapidamente às mudanças do ambiente), outros sistêmicos (voltados para o coletivo) e ainda há os processuais (que evoluem gradualmente, com ajustes e aprendizados ao longo da execução).
No plano de governo, o equilíbrio surge da combinação entre a estratégia deliberada, que dá direção, a visão sistêmica, que pensa o coletivo, e a abordagem processual, que aprende e se adapta no caminho.
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Como fortalecer as duas faces do plano de governo
Se o desafio é equilibrar o plano como peça de campanha e como roteiro de gestão, três elementos são indispensáveis. Eles funcionam como as chaves para unir inspiração e viabilidade:
- Diagnóstico realista: conhecer profundamente a realidade é o primeiro passo para não cair na tentação de prometer o impossível. Só um diagnóstico sólido dá sustentação a compromissos que mobilizam o eleitor e são viáveis na prática.
- Metas estruturantes: são aquelas que precisam ser realizadas em qualquer cenário, porque sustentam a credibilidade do candidato e o futuro político. Elas dão coerência ao discurso de campanha e funcionam como pilares da gestão.
- Flexibilidade responsável: emergências sempre vão surgir. O equilíbrio está em saber recalcular rotas sem trair o contrato assumido com a sociedade. Essa postura preserva a confiança do eleitor e permite que o governante avance mesmo em meio a crises.
Esses três pontos são o caminho para conciliar as duas faces do plano de governo. Eles tornam o documento robusto o bastante para embalar a campanha e, ao mesmo tempo, realista o suficiente para resistir às intempéries da administração pública.
Em resumo: um plano vivo
As duas faces do plano de governo não podem ser dissociadas. Um plano que serve apenas para encantar o eleitor cai na armadilha da fantasia que mina a credibilidade do político quando não se concretiza. Um plano apenas técnico pode ser viável na gestão, mas dificilmente mobiliza votos.
É um paradoxo: a virtude técnica, que garantiria boa execução, se transforma em fraqueza eleitoral ao não eleger o candidato. O contrário também é verdadeiro: um plano forte para atrair votos, mas inexequível, pode levar à vitória nas urnas, mas resultará em frustração na gestão e desgaste político.
O diferencial está em conciliar as duas dimensões: documento de campanha e roteiro de gestão, inspirador e viável, sonho e realidade, promessa e cumprimento.



