Quatro pessoas em reunião observam a tela de um computador que mostra duas ilustrações comparativas: em cima, “PLANO DE GOVERNO”, com ciclista em estrada reta; embaixo, “GESTÃO”, com ciclista enfrentando buracos e obstáculos. A cena simboliza as duas faces do plano de governo, como peça de campanha e roteiro de gestão.

As duas faces do plano de governo: do palanque eleitoral à gestão

Foto de José Roberto Martins

José Roberto Martins

Jornalista e Especialista em Comunicação Governamental e Marketing Político | IDP Brasília

Como equilibrar um documento que atraia votos e, ao mesmo tempo, possa ser cumprido na hora de governar.

À primeira vista, o plano de governo parece uma estrada reta: escrever um conjunto de propostas, protocolar no Tribunal Superior Eleitoral e imaginar que, se eleito, tudo acontecerá de forma linear.

Mas basta olhar a realidade para perceber o contrário: o caminho da gestão é cheio de buracos, disputas políticas, crises inesperadas e obstáculos imprevistos.

Pois é, eis aí as duas faces do plano de governo:

  1. De um lado, tem que ser um documento capaz de embalar a campanha, atrair a confiança do eleitor e transformar promessas em votos.
  2. De outro, precisa ser um roteiro viável, com pé no chão, possível de se realizar, para assegurar credibilidade e futuro político.
LEIA TAMBÉM:

O plano de governo como peça de campanha

O plano de governo não é um exercício literário ou um mero requisito burocrático do processo eleitoral. Ele é, na prática, uma peça estratégica da campanha:

  • Dá base ao discurso do candidato
  • Inspira materiais, jingles, debates e entrevistas
  • Funciona como contrato público com a sociedade, em que cada compromisso será alvo de cobranças.

A questão é que promessas mirabolantes podem até render manchetes e, no calor da eleição, seduzir o eleitorado. Porém, ao longo do tempo, elas podem virar uma armadilha. Se não se realizarem, corroem a imagem do governante, comprometem sua chance de reeleição e fecham portas para outros voos na política.

Por isso, o desafio é pensar o plano desde o início como um documento que combina sonho e realismo. Deve mostrar visão de futuro, mas sem cair no erro de oferecer o impossível.

O plano de governo como roteiro de gestão

Entre as duas faces do plano de governo, a segunda é aquela que se revela depois da eleição. O mesmo documento que serviu para conquistar votos passa a servir como bússola para governar.

Só que, na gestão pública, a execução nunca é um passeio no parque. Existem limitações orçamentárias, crises econômicas, pressões políticas, judicialização e podem acontecer até catástrofes, como a pandemia de Covid demonstrou. Nesses momentos, o plano de governo precisa resistir como um norte estratégico.

Isso significa duas coisas:

  1. Cumprir compromissos centrais. Não se trata de executar necessariamente cada linha ao pé da letra, mas de manter coerência com as bases assumidas diante do eleitor
  2. Ter flexibilidade responsável. É natural recalcular rotas diante de emergências, mas sem romper com os compromissos que estão no contrato com a sociedade.

Um governante preparado não é o que promete mundos e fundos, e sim aquele que cumpre o essencial e tem jogo de cintura para lidar com novos desafios.

Lições do planejamento estratégico

No campo do planejamento estratégico, originalmente pensado para empresas e corporações, existem duas formas de olhar para a estratégia que ajudam a entender o papel do plano de governo. Embora esses conceitos tenham origem no âmbito das empresas, eles são muito úteis para refletir sobre política e gestão pública.

A primeira forma olha para o fluxo: existe a estratégia pretendida (o que está no papel), a deliberada (o que se cumpre de fato) e a emergente (o que surge no caminho e passa a ser incorporado).

A segunda olha para o estilo adotado: alguns planos são clássicos (fechados e previsíveis), outros evolucionários (que reagem rapidamente às mudanças do ambiente), outros sistêmicos (voltados para o coletivo) e ainda há os processuais (que evoluem gradualmente, com ajustes e aprendizados ao longo da execução).

No plano de governo, o equilíbrio surge da combinação entre a estratégia deliberada, que dá direção, a visão sistêmica, que pensa o coletivo, e a abordagem processual, que aprende e se adapta no caminho.

LEIA TAMBÉM:

Como fortalecer as duas faces do plano de governo

Se o desafio é equilibrar o plano como peça de campanha e como roteiro de gestão, três elementos são indispensáveis. Eles funcionam como as chaves para unir inspiração e viabilidade:

  1. Diagnóstico realista: conhecer profundamente a realidade é o primeiro passo para não cair na tentação de prometer o impossível. Só um diagnóstico sólido dá sustentação a compromissos que mobilizam o eleitor e são viáveis na prática.
  2. Metas estruturantes: são aquelas que precisam ser realizadas em qualquer cenário, porque sustentam a credibilidade do candidato e o futuro político. Elas dão coerência ao discurso de campanha e funcionam como pilares da gestão.
  3. Flexibilidade responsável: emergências sempre vão surgir. O equilíbrio está em saber recalcular rotas sem trair o contrato assumido com a sociedade. Essa postura preserva a confiança do eleitor e permite que o governante avance mesmo em meio a crises.

Esses três pontos são o caminho para conciliar as duas faces do plano de governo. Eles tornam o documento robusto o bastante para embalar a campanha e, ao mesmo tempo, realista o suficiente para resistir às intempéries da administração pública.

Em resumo: um plano vivo

As duas faces do plano de governo não podem ser dissociadas. Um plano que serve apenas para encantar o eleitor cai na armadilha da fantasia que mina a credibilidade do político quando não se concretiza. Um plano apenas técnico pode ser viável na gestão, mas dificilmente mobiliza votos.

É um paradoxo: a virtude técnica, que garantiria boa execução, se transforma em fraqueza eleitoral ao não eleger o candidato. O contrário também é verdadeiro: um plano forte para atrair votos, mas inexequível, pode levar à vitória nas urnas, mas resultará em frustração na gestão e desgaste político.

O diferencial está em conciliar as duas dimensões: documento de campanha e roteiro de gestão, inspirador e viável, sonho e realidade, promessa e cumprimento.

Afinal, a verdadeira força de um candidato não está em dizer o que o eleitor quer ouvir, mas em apresentar uma visão inspiradora e realizável. É isso que transforma um plano em vitória, a vitória em governo e o governo em futuro político sustentável.